[Opinião] Por que a direita dos EUA está tão interessada em psicodélicos?

Os “cogumelos mágicos” não são uma cura mágica para os males da sociedade, e algo tão poderoso quanto os psicodélicos pode ser perigoso se cair nas mãos erradas.

Os psicodélicos, historicamente associados a movimentos contraculturais e ideais progressistas, estão ganhando espaço em um cenário improvável: a direita dos Estados Unidos (EUA). Investidores como Peter Thiel, políticos conservadores e até figuras controversas como Steve Bannon demonstram interesse crescente no uso terapêutico dessas substâncias.

De forma inusitada, entre os democratas, a deputada Alexandria Ocasio-Cortez entra em consenso com o republicano Dan Crenshaw ao defender a pesquisa psicodélica para veteranos. Porém, o financiamento de psicodélicos pela direita levanta questões: seriam essas substâncias uma ferramenta para fortalecer o complexo militar-industrial?

Por mais transformadores que possam ser, os psicodélicos não estão imunes ao contexto em que são usados. Assim como no caso do festival Burning Man – onde ideais utópicos foram tomados pela elite do Vale do Silício –, há o risco de que terapias psicodélicas se tornem privilégios de poucos, descoladas de uma visão social de igualdade e justiça.

Psicodélicos podem abrir mentes, mas isso não garante uma mudança para algo melhor. Quando impulsionados por interesses financeiros e políticos, podem reforçar desigualdades e até justificar agendas autoritárias. Se quisermos que essas substâncias sirvam ao bem coletivo, é essencial integrá-las a uma visão de justiça social, garantindo que seus benefícios cheguem a todos – e não apenas a quem tem dinheiro ou poder.

Este post é uma síntese do artigo de opinião “Why is the American right suddenly so interested in psychedelic drugs?”, publicado no The Guardian por Ross Ellenhorn e Dimitri Mugianis.

A seguir, confira a tradução livre do artigo completo:

As terapias psicodélicas estão recebendo um apoio financeiro e político sem precedentes – e grande parte dele vem da direita dos Estados Unidos (EUA). Peter Thiel investiu extensivamente na emergente indústria terapêutica psicodélica. Jordan Peterson é um fã de psilocibina. Em 2018, a Mercer Foundation doou 1 milhão de dólares à Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS), a principal organização de pesquisa psicodélica dos EUA sobre estudos com MDMA para o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em veteranos. A família Mercer também apoia a direita americana e a negação da crise climática. Eles estão bem longe de Woodstock – mas a MAPS e alguns outros defensores dos psicodélicos parecem contentes com qualquer apoio que possam receber.

Certamente, também existem muitos liberais que apoiam o uso terapêutico de psicodélicos. Em 2022, Alexandria Ocasio-Cortez ofereceu uma emenda bem-sucedida ao novo projeto de lei de gastos com defesa de 768 bilhões de dólares para apoiar pesquisas psicodélicas para veteranos e membros ativos das forças armadas. Dan Crenshaw, veterano da marinha e representante republicano do Texas, também apresentou uma emenda semelhante. Matt Gaetz, republicano da Flórida e notório misógino, fez uma proposta parecida.

Por outro lado, os psicodélicos sempre foram associados a experimentos utópicos. Hoje, alguns pesquisadores sonham em encontrar uma base científica para a hipótese de que essas substâncias poderiam ajudar a acabar com conflitos políticos intratáveis. Em 2018, o Imperial College recebeu grande atenção por um pequeno estudo sugerindo que uma dose de terapia com psilocibina reduziu o apoio a “atitudes autoritárias”. Poderiam os psicodélicos ser a cura para as tendências anti-democráticas? Rick Doblin, fundador da MAPS, sugeriu até que o uso de psicodélicos poderia ajudar a interromper a degradação ambiental.

É possível que os psicodélicos possam dar abertura a novas ideias, porém, isso pode sinalizar uma abertura não apenas aos movimentos de paz e amor – mas ao nazismo, ecofascismo ou cultos ufológicos. Julius Evola, filósofo italiano e fascista admirado tanto por Hitler quanto por Steve Bannon, era um ferrenho defensor do LSD. O governador Greg Abbott, do Texas, que virou notícia por enviar ônibus de migrantes para Nova York, Washington e Chicago, assinou um projeto de lei estadual em 2021 para estudar os benefícios terapêuticos dos psicodélicos. Steve Bannon também apoia a legalização dos psicodélicos.

Como apontam os professores Brian Pace e Neşe Devenot em seu trabalho refutando a ciência sobre os psicodélicos como uma espécie de remédio para o autoritarismo, os psicodélicos nunca tiveram uma base de fãs puramente de esquerda. Andrew Anglin, fundador do site neonazista Daily Stormer, experimentou psicodélicos extensivamente na sua juventude. O fundador do 8chan, o extinto fórum extremista que hospedou os manifestos de vários atiradores em massa, se inspirou em uma viagem com cogumelos.

E por que a direita americana está tão intrigada com essas substâncias hoje? A resposta mais óbvia é o dinheiro. À medida que os psicodélicos são absorvidos pela medicina convencional, eles prometem se tornar outra vaca leiteira estadunidenense. O dinheiro virá de patentes sobre formulações inovadoras e pelo patenteamento e fornecimento das técnicas de tratamento associadas.

Pode haver fatores políticos em jogo também. A doação da Mercer Foundation para a MAPS foi motivada pelo desejo de reforçar os recursos militares americanos, aliviando os danos sofridos por aqueles enviados para lutar nessas guerras? O complexo militar-industrial é ainda mais lucrativo do que o setor farmacêutico, mas essas armas ainda exigem seres humanos para implantá-las. O financiamento de psicodélicos pela direita seria uma tentativa de garantir a viabilidade contínua das guerras promovidas pelos EUA ao redor do mundo? Se o MDMA é tão útil no tratamento do TEPT, por que veteranos têm prioridade especial em uma sociedade que traumatizou tantas pessoas? E o trauma do racismo, da pobreza, da violência policial e da prisão em massa – problemas ativamente aumentados por políticas de direita apoiadas por pessoas como a família Mercer?

Os psicodélicos têm o potencial de ajudar as pessoas a romperem com pensamentos repetitivos e destrutivos,  e ajudá-las a descobrir novas possibilidades e novas alegrias. Mas os efeitos das drogas psicoativas nunca podem ser dissociados do seu contexto. É tolice imaginar uma transformação positiva alcançada com a ajuda de Rebekah Mercer, Steve Bannon ou Greg Abbott. Afinal, essas são as mesmas pessoas que se opõem veementemente ao atendimento universal de saúde nos EUA e negam as mudanças climáticas. Com seu apoio, podemos esperar que a “medicina psicodélica” seja um privilégio da elite, como uma ferramenta do poder estatal ou um motor de teorias da conspiração, ao invés de um movimento psicodélico libertário. Até que tenhamos um sistema universal de saúde pública, os benefícios da terapia psicodélica estarão fora do alcance da maioria dos estadunidenses.

Seria ingênuo esperar que os psicodélicos mudem sua mente para melhor (na formulação de Michael Pollan) quando eles são um presente da direita, ou quando são oferecidos dentro de um quadro de desigualdade grotesca. Olhe para o Burning Man: essa pseudo-utopia se tornou um parque de diversões para os ultra-ricos do Vale do Silício. Ela deixa o deserto coberto por milhares de bicicletas abandonadas e provoca engarrafamentos de 12 horas – que está mais quente do que nunca devido ao nosso consumo excessivo de combustíveis fósseis. Com a companhia errada, uma jornada de autodescoberta pode levar a um solipsismo ainda mais profundo. De fato, a ilusão de transcendência pode ser usada para justificar maior egoísmo, até mesmo crueldade.

As terapias psicodélicas – como todas as outras formas de cuidado – devem estar disponíveis para quem precisa delas, não apenas para aqueles com dinheiro, conexões e utilidade política. Na comunidade psicodélica, há muito papo sobre “integração”, o processamento de sua viagem. Mas essa “integração” muitas vezes é limitada ao indivíduo. Para ser verdadeiramente benéfica, os psicodélicos devem ser integrados a uma visão social de igualdade e justiça, que se opõe ao sacrifício da vida humana e da saúde no altar dos gastos militares e da construção de impérios, que valoriza cada vida, independentemente de raça, nacionalidade, religião, gênero ou classe. Os defensores dos psicodélicos precisam parar de se aproximar da direita e expandir sua missão para englobar um compromisso com uma justiça social mais ampla.

Confira o artigo original no The Guardian:

https://amp.theguardian.com/commentisfree/2022/oct/18/psychedelic-drugs-us-republican-thiel-mercer-foundation

Anterior
Anterior

Instituto Micélio Sagrado revela estudo inédito sobre cogumelos psilocibinos e saúde pública no Brasil

Próximo
Próximo

Impactos da psilocibina no sono: um estudo preliminar