[Opinião] O direito constitucional ao uso cerimonial dos cogumelos psilocibinos

A questão envolvendo o uso cerimonial dos “fungos de poder”, ou “cogumelos sagrados” como o Psilocybe cubensis, embora antiga, tem ganhado destaque crescente, particularmente após evidências clínicas apontarem para a segurança e eficácia terapêutica de seus alcaloides. Esse cenário tem impulsionado diversas vertentes espirituais e místicas ocidentais a incorporar esses psicoativos em seus rituais cerimoniais nas últimas décadas.

Historicamente, em todos os continentes, há registros de diversas culturas utilizando esses fungos em seus “cerimoniais de cura e transcendência”. Próximos a nós, os povos da Mesoamérica são notavelmente conhecidos pelo uso cerimonial dos cogumelos da espécie Psilocybe, consumidos para facilitar a comunicação consigo e com o mundo espiritual. Dentre esses povos, destacam-se os Mazatecas, Mixtecas, Zapotecas, Tepehuanes, entre outros.

Entretanto, a colonização espanhola, iniciada no século XVI, reprimiu violentamente as práticas religiosas locais, dizimando grande parte dessas tradições. A chegada de missionários católicos contribuiu significativamente para a eliminação das culturas cerimoniais com os fungos e outras plantas sagradas, que eram consideradas demoníacas pela Igreja Católica. Estes missionários associavam os estados incomuns de consciência (induzidos por essas substâncias) à manifestação de espíritos malignos, e qualquer prática religiosa não aprovada pela Igreja era imediatamente colocada sob suspeita e associada ao culto demoníaco. Com o tempo, essas práticas foram substituídas pelos ritos e crenças cristãs.

No contexto moderno, inúmeros exemplos de violações aos direitos de crença, espiritualidade e religião ainda ecoam o passado. Entre os casos mais emblemáticos, o Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial expôs o trágico custo da intolerância, com o nazismo não apenas dizimando cerca de seis milhões de judeus, mas também exterminando milhões de outros considerados "indignos de viver", incluindo povos Romani, testemunhas de Jeová, comunidades esotéricas e adeptos de espiritualidades alternativas. Esse legado de repressão evidencia a persistência do preconceito e do controle sobre práticas espirituais consideradas não convencionais. No entanto, a recente redescoberta dos rituais ancestrais envolvendo fungos enteogênicos, aliada à revelação das propriedades terapêuticas do Psilocybe cubensis, coloca em pauta a importância de resguardar, hoje, o direito à liberdade de consciência, crença e culto com o uso desses enteógenos no Brasil.

A Constituição Federal de 1988 assegura, no artigo 5º, inciso VI, a inviolabilidade da consciência, o exercício da crença e a prática de cultos, impondo ao Estado o dever de garantir, na forma da lei, a proteção dos espaços litúrgicos, sendo vedado aos entes federados “embaraçar-lhes o funcionamento” (artigo 19, I). Isso garante um espaço jurídico de proteção para o uso de substâncias sagradas em contextos religiosos e espirituais. O artigo 5º, inciso VIII, garante que ninguém será privado de seus direitos em razão de crença religiosa. Em conjunto com o inciso IX, que abrange a liberdade de convicção filosófica e política, e o inciso XLI, que pune discriminações que atentem contra direitos e liberdades fundamentais, a Constituição assegura a liberdade religiosa e de crença. A Lei nº 9.459/1997 tipifica a discriminação por motivo de religião, e o Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848/1940) considera crime ofender o culto ou a liturgia de qualquer religião (art. 208). A falta de regulamentação dos cogumelos psilocibinos no Brasil e a tentativa recorrente de criminalizar seu uso, sempre sob a ótica do controle de drogas, entra em conflito com direitos fundamentais dos cidadãos, especialmente no que diz respeito ao uso cerimonial dessas substâncias.

Os cogumelos psilocibinos, além de apresentar fortes evidências para o tratamento de diversos transtornos mentais, têm sido uma ferramenta para aqueles que buscam uma conexão profunda com sua dimensão espiritual, sem a necessidade de se vincular a um sistema religioso clássico ou a uma ideologia formal estabelecida. Essas práticas são legítimas e devem ser respeitadas pelo Estado. Não podem ser vistas sob a ótica da moralidade ou do controle político das drogas, mas sim sob a perspectiva do direito fundamental do cidadão de cuidar do espírito e de se investigar em busca de autoconhecimento e ampliação da consciência. O uso cerimonial desses fungos visa essencialmente ampliar a capacidade de reflexão pessoal, permitindo que o indivíduo questione suas ações e a própria vida, muitas vezes rompendo com os padrões colonizadores de pensamento.

Em vez de ser encarados como perigosos, os fungos enteógenos devem ser reconhecidos como patrimônio genético da humanidade, cuja utilização proporciona autêntico aprimoramento e transformação. Nesse contexto, a ausência de regulamentação, combinada com a interpretação estatal incriminatória, ignora a pluralidade de formas de conexão com o self e com as espiritualidades. Em nome de preconceitos históricos, repetem-se as mesmas injustiças e violências observadas em períodos passados. O debate sobre a regulamentação dos fungos psilocibinos deve transcender as perspectivas políticas e preconceituosas, levando em conta o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos e à sua liberdade de consciência. É importante que o Estado promova o uso responsável dessas substâncias para fins religiosos, de reflexão e de autodescobrimento humano.

Nesse caminho,  à postura estatal incriminatória da venda e cultivo desses fungos, é sabido que o corpo dos cogumelos psilocibinos não consta na “Lista de plantas e fungos proscritos” da portaria 344/1998 da ANVISA. Apenas a substância psilocibina — quando extraída, separada e disponibilizada para uso ou venda — consta na Lista F2, de substâncias de uso proscrito. Embora o Psilocybe cubensis não figure na lista de fungos e plantas, outro fungo, o Claviceps purpurea (responsável pela síntese do LSD), está listado na Lista E de fungos e plantas proibidos. Isso revela que, quando o regulador desejou proibir o comércio de determinada planta ou fungo, seguiu o princípio da legalidade penal, incluindo-os na lista apropriada. No caso do Psilocybe cubensis, como ainda não consta na Lista E, a proibição recai apenas sobre a extração e síntese da psilocibina, sem implicar a criminalização do cultivo do fungo em si. Como bem coloca o princípio jurídico: “Onde impera a mesma razão, deve imperar o mesmo direito”. Portanto, não se pode confundir ausência de regulamentação com proibição ou incriminação”.

Todavia, enquanto o estado brasileiro persistir em interpretar a lei penal de forma extensiva, com o intuito de criar crimes de tráfico não previstos (contra cultivadores e espiritualistas cerimoniais), continuaremos a testemunhar reiteradas violações dos direitos fundamentais relacionados à liberdade pessoal, espiritualidade, crença e liturgias. A constante tentativa de estender, interpretativamente, a proibição de substâncias (moléculas) à criminalização de plantas e fungos, sem qualquer respaldo legal, desrespeita os direitos constitucionais, evidenciando uma grave discriminação institucional. Como resultado, enquanto não houver um esforço genuíno de compreensão, regulação e garantia dos direitos, continuaremos a assistir a abusos estatais, materializados em prisões ilegais de fungicultores e praticantes de religiões alternativas, que buscam, de maneira justa, exercer seus direitos à liberdade de consciência, crença e espiritualidade religiosa.

Para se aprofundar mais:

https://www.conjur.com.br/2024-out-10/a-atipicidade-dos-cogumelos-magicos/

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