O real xamanismo VS pseudoxamanismo new age: reflexões acerca da autenticidade cultural das práticas modernas

O que define um autêntico xamã?

A figura do xamã é a de um líder curador e orientador espiritual, de ascendência tradicional, cujas práticas estão profundamente arraigadas em sua linhagem cultural e comunitária. Este papel — comumente observado em culturas indígenas ao redor do mundo — é assumido por alguém que medeia o mundo espiritual e o físico, e em geral, será sempre alguém nascido e reconhecido em sua comunidade. Os verdadeiros xamãs são respeitados líderes espirituais, formados por meio de ritos de iniciação que testam não apenas suas habilidades mentais e físicas, mas também seu caráter, força e compromisso com a comunidade.

Para ser considerado um xamã, o indivíduo, eleito para o chamado dentro de sua tradição, passa por um rigoroso “processo de formação” em sua comunidade. Esse treinamento pode incluir, por exemplo:

  • Aprendizado de práticas ancestrais de cura, como o uso de plantas medicinais, cânticos e danças rituais.

  • Domínio da projeciologia, para entrar em contato com o mundo espiritual e trazer mensagens ou orientações para a comunidade.

  • Aconselhamento e orientação da comunidade, atuando como guia para aqueles que buscam ajuda.

Esses elementos tornam o xamã uma figura devocional, cujo compromisso de vida é estar a serviço de sua comunidade. Apenas pessoas dessas tradições, que passaram por iniciações rigorosas e aprendizado prático em suas comunidades tradicionais, podem legitimamente adotar o título de xamã.

Vale lembrar que nem todas as vertentes se utilizam de expansores de consciência ou plantas de poder em suas práticas visionárias. Além disso, nas linhagens tradicionais, o saber xamânico é transmitido de forma oral (de mestre para aprendiz), sem disseminação escrita ou divulgação para fora do grupo.

A apropriação do termo por grupos New Age

Nos últimos anos, temos observado a apropriação indevida de termos e práticas espirituais tradicionais por grupos urbanos e movimentos New Age. Essa apropriação resulta na produção de versões superficiais e descontextualizadas de tradições sagradas, como ocorre com o termo “xamanismo”.

Frequentemente, pessoas sem qualquer conexão cultural com as tradições xamânicas, sem compromisso com suas raízes, autointitulam-se “xamãs” como forma de autopromoção, status ou prestígio social, apropriando-se do conceito de maneira comercial e distorcida.

Para as culturas tradicionais, em contrapartida, o xamanismo é um papel atribuído a esses povos, acompanhado de elevada dedicação e responsabilidade comunitária. É um conhecimento que exige profundo respeito pela natureza e pelo mundo espiritual, com práticas transmitidas cuidadosamente através das gerações. O uso mercantil e descontextualizado do termo em ambientes urbanos, por aqueles que buscam projeção pessoal, ignora o compromisso sagrado que o verdadeiro xamanismo exige, criando uma imagem deturpada e rebaixada do significado de ser xamã.

A importância do respeito e da autenticidade cultural

Para muitas comunidades indígenas, a utilização do termo “xamã” fora de seu contexto é ofensiva e representa uma forma de apropriação cultural. Esse uso impróprio viola tradições sagradas, preservadas com extrema dificuldade até os tempos modernos. Portanto, é crucial que haja conscientização para respeitar e preservar a autenticidade e os direitos desses povos minoritários em suas práticas sagradas.

Se você não nasceu em um contexto xamânico, não foi iniciado em uma linhagem espiritual tradicional específica, e não recebeu o aprendizado oral para servir a uma comunidade, é fundamental reconhecer o equívoco (e o abuso) de se apropriar do termo “xamã”. Em outras palavras: se você não é xamã, nos moldes descritos acima, respeite e não se aproprie do termo.

Esse respeito, ainda que simbólico, possui grande importância, pois valoriza e preserva o significado e a profundidade das tradições espirituais de nossa terra, que por gerações resistem às múltiplas intervenções colonizatórias. Reconhecer isso, evitando o uso indevido do termo, é o mínimo que se espera daqueles que afirmam promover elevação espiritual.

Exemplos de xamanismos autênticos ao redor do mundo

Abaixo, alguns exemplos de tradições xamânicas autênticas:

  • Xamãs da Sibéria (Buriátia, Tuva, Yakutia): A palavra “xamã” tem origem na Sibéria, onde designa líderes espirituais que servem suas comunidades por meio de cânticos, tambores e jornadas espirituais para cura e proteção.

  • Xamãs da Amazônia (Shipibo-Conibo, Yawanawá, Huni Kuin, Ashaninka): Possuem conhecimento profundo sobre plantas medicinais, incluindo a ayahuasca, usada em rituais de cura e conexão espiritual.

  • Curandeiros indígenas da América do Norte (Lakota, Navajo, Cherokee): Conduzem cerimônias como a Dança do Sol e rituais de purificação, utilizando ervas para promover cura e bem-estar.

  • Xamãs Andinos (Q’ero no Peru): Praticam cerimônias de oferendas à Pachamama e guardam conhecimentos ancestrais dos povos incas, promovendo equilíbrio entre humanos e a natureza.

  • Curandeiros Maori da Nova Zelândia: Embora o termo “xamã” não seja utilizado, os curandeiros Maori realizam cânticos e cerimônias para cura e conexão com os ancestrais.

  • Xamãs dos Sami na Lapônia (Noruega, Suécia, Finlândia, Rússia): Incluem comunicação com espíritos da natureza e dos ancestrais, muitas vezes através de tambores sagrados.

Esses exemplos representam a essência do xamanismo: uma ligação sagrada com a natureza, com o mundo espiritual e com o bem-estar de suas comunidades. Mantêm uma conexão com seus conhecimentos ancestrais e atuam com grande responsabilidade e respeito, em benefício de todos.

Conclusão

Diante do crescente interesse pelo xamanismo e suas práticas espirituais, é fundamental refletir sobre o verdadeiro significado desse papel ancestral, bem como as implicações de sua apropriação indevida. O xamanismo não é uma prática ou título que se adota superficialmente; representa um compromisso profundo de um representante ancestral para com sua comunidade, a natureza e o mundo espiritual, transmitido de geração em geração nas culturas tradicionais. A banalização desse conceito, especialmente por grupos urbanos desvinculados dessas raízes culturais, não apenas vilipendia a essência do xamanismo, como desrespeita tradições que tentam sobreviver com extremo sacrifício em meio às violências colonizatórias ao longo dos tempos.

Respeitar a figura do xamã em sua forma autêntica é reconhecer a importância das comunidades que mantêm esses saberes vivos. Ao promover uma compreensão ética e consciente sobre essas tradições minoritárias, valorizamos e protegemos o legado cultural e espiritual dos povos que dedicam suas vidas à preservação desses saberes sagrados.

Referências

Celidwen, Y., Redvers, N., Githaiga, C., Calambás, J., Añaños, K., Chindoy, M. E., Vitale, R., Rojas, J. N., Mondragón, D., Rosalío, Y. V., & Sacbajá, A. (2023). Ethical principles of traditional Indigenous medicine to guide western psychedelic research and practice. The Lancet Regional Health - Americas, 18, 100410. doi:10.1016/j.lana.2022.100410

Omágua-Kambeba, A., Labate, B. C., & Ribeiro, S. (2023). Psychedelic science and Indigenous shamanism: an urgent dialogue. Nature Mental Health, 1(11), 815–816. doi:10.1038/s44220-023-00150-9

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