Espiritualidade e psiquiatria: uma conexão necessária

Pesquisadores observaram um aumento alarmante nas “mortes por desespero” ao longo dos últimos 30 anos nos Estados Unidos (EUA), termo que abrange óbitos por suicídio, overdose de drogas e alcoolismo. Em maio de 2023, o Dr. Vivek Murthy, autoridade máxima em saúde pública nos EUA, destacou outra crise associada a esse fenômeno: a epidemia de solidão e isolamento, com efeitos devastadores na sociedade. Esses cenários evidenciam como o desespero e a desconexão afetam profundamente o bem-estar psicológico. Em meio a esse contexto, surge uma questão muitas vezes negligenciada na prática clínica: a dimensão espiritual na saúde mental. A espiritualidade, que abrange a busca por significado, propósito e conexão com algo maior, pode ser uma resposta ao vazio que leva ao isolamento, desesperança e ideação suicida. No entanto, esse aspecto fundamental da experiência humana ainda é subvalorizado em muitos tratamentos psiquiátricos.

A espiritualidade na saúde mental

Na prática clínica, frequentemente nos deparamos com pacientes que lutam com questões existenciais, como “por que isso aconteceu comigo?”. Suas preocupações, por vezes, são mais profundas: “Se existe um Deus, por que permitiria que alguém sofresse assim?”. Essa busca por sentido se reflete em nossas relações com nós mesmos, com os outros e com o mundo ao nosso redor, e está profundamente conectada à espiritualidade — uma dimensão fundamental da experiência humana, que envolve a procura por significado, propósito e conexão com algo maior. Quando reconhecida, a espiritualidade pode se tornar um recurso terapêutico crucial, trazendo conforto e esperança aos pacientes.

A falta de consideração pela espiritualidade nos tratamentos

Apesar da espiritualidade desempenhar um papel significativo na vida de muitos pacientes psiquiátricos, a maioria dos modelos de avaliação e tratamentos negligencia esse aspecto. Em contraste com a psiquiatria, por exemplo, o campo dos cuidados paliativos já reconhece a importância da espiritualidade e oferece suporte para que os pacientes possam explorar suas questões espirituais, o que poderia servir de inspiração para outras áreas da saúde.

Entretanto, após uma revisão das evidências sobre espiritualidade e saúde, a Associação Mundial de Psiquiatria recomendou que esses aspectos sejam integrados aos cuidados clínicos, reconhecendo os benefícios das comunidades espirituais para o bem-estar mental dos pacientes. Dessa forma, os pacientes podem nutrir conexões significativas consigo mesmos, com os outros, com a natureza ou com um poder superior. 

Limitações e novas possibilidades para a psiquiatria

A busca por métodos objetivos e quantificáveis para avaliar o adoecimento mental tem seus limites, pois a complexidade da mente humana e a natureza intangível de fenômenos como a espiritualidade desafiam uma abordagem puramente científica. O modelo psiquiátrico atual, baseado em evidências, tem sido fundamental para o desenvolvimento de tratamentos eficazes para muitos transtornos mentais, que são bem-sucedidos para algumas pessoas, em determinados momentos e até certo ponto. Aqueles que não se beneficiam dessas intervenções progridem frequentemente por meio de várias tentativas de troca e adição de medicamentos em combinação com psicoterapia.

Contudo, depender exclusivamente dessas abordagens pode deixar de atender às necessidades de muitos. Os pacientes que não respondem a esses tratamentos podem se sentir desamparados e marginalizados. Nesse contexto, os psicodélicos e a ocorrência de experiências espirituais oferecem à psiquiatria uma nova abordagem e a oportunidade de reavaliar sua negligência com a espiritualidade.

Freud, religião e o impacto na visão psiquiátrica da espiritualidade

Mas o que pode ter influenciado essa negligência da psiquiatria com a espiritualidade ao longo das décadas? As perspectivas do neurologista e psicanalista Sigmund Freud moldaram significativamente a percepção da psiquiatria sobre a espiritualidade. Em seu livro, “O Futuro de uma Ilusão”, Freud escreveu: “A religião é um sistema de ilusões desejosas juntamente com uma renúncia à realidade”, uma posição que provavelmente teve implicações de longo alcance sobre como os psiquiatras consideram a religião e a espiritualidade, sendo eles os membros menos religiosos entre os médicos. Em seu trabalho subsequente, “O Mal-Estar na Civilização”, Freud descreve uma carta que recebeu de seu amigo e poeta francês, Romain Rolland, na qual o poeta concordava com a posição de Freud sobre a religião, mas expressava preocupação com sua rejeição da experiência espiritual. Freud escreveu sobre a descrição de espiritualidade de seu amigo:

Isto, ele diz, consiste em um sentimento peculiar, do qual ele próprio nunca se ausenta, que encontra confirmado por muitos outros, e que pode supor estar presente em milhões de pessoas. É um sentimento que ele gostaria de chamar de sensação de ‘eternidade’, um sentimento como algo ilimitado, sem fronteiras – como se fosse, ‘oceânico’.”

Experiências espirituais e pesquisas psicodélicas

Apesar do legado de Freud, o campo da psiquiatria tem começado a explorar novas dimensões, como demonstrado pelas pesquisas psicodélicas. Quase 100 anos após as perspectivas de Freud, os fenômenos de admiração, unidade com o sagrado, conexão e inefabilidade estão sendo estudados em ensaios psicodélicos, utilizando escalas como o Questionário de Experiência Mística e Estados Alterados de Consciência. Mesmo sendo uma área de debate ativo, há evidências crescentes de que essas experiências espirituais ou místicas desempenham um papel crucial na mediação dos benefícios terapêuticos dos tratamentos psicodélicos. Uma revisão sistemática de 12 estudos sobre terapia psicodélica revelou que dez deles estabeleceram uma associação significativa entre experiências místicas e eficácia terapêutica. Embora não seja surpreendente, considerando que os psicodélicos têm sido utilizados em práticas espirituais tradicionais por milênios, essas descobertas fornecem uma base sólida para discutir as ideias de Rolland e Freud sobre a espiritualidade na saúde mental.

Reflexão sobre os limites da psicanálise

As limitações da psicanálise, evidenciadas nas palavras de Freud sobre o entendimento do sentimento “oceânico”, nos levam a reconsiderar a importância de experiências espirituais na compreensão do bem-estar mental. Mais adiante em “O Mal-Estar na Civilização”, Freud admite:

Não consigo descobrir esse sentimento ‘oceânico’ em mim mesmo. Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos… A partir de minha própria experiência, não consegui me convencer da natureza primária de tal sentimento. Mas isso não me dá o direito de negar que esse fenômeno de fato ocorre em outras pessoas.”

Esse ceticismo em relação à espiritualidade pode ter contribuído para uma abordagem reducionista na psicanálise, que perdurou por décadas, desconsiderando as dimensões espirituais que são fundamentais para a experiência humana. Hoje, ao observar pacientes desenganados obtendo benefícios com experiências transcendentais catalisadas pela psilocibina, somos levados a questionar, com humildade, quais necessidades não atendidas podem estar por trás da resistência ao tratamento.

Isso nos obriga, como profissionais de saúde, a reexaminar o papel da espiritualidade na prevenção, avaliação e tratamento de doenças mentais, garantindo que não deixemos de atender às necessidades mais profundas de nossos pacientes. É evidente que nem todos os pacientes psiquiátricos são bons candidatos para terapias psicodélicas, mas cada indivíduo merece um tratamento que leve em consideração suas necessidades e fontes potenciais de conexão, significado e transcendência — uma abordagem que a psiquiatria precisa enfatizar.

Conclusões

À medida que a pesquisa sobre espiritualidade, psicodélicos e saúde mental avança, como podemos garantir que não deixemos essa dimensão vital de lado em nossas práticas e discussões? O que cada um de nós pode fazer para promover uma abordagem mais holística no cuidado psiquiátrico?

Referência

Post inspirado no artigo de opinião “Revisiting psychiatry’s relationship with spirituality“, publicado na revista científica Frontiers in Psychiatry: https://www.frontiersin.org/journals/psychiatry/articles/10.3389/fpsyt.2024.1441922/full

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